
A crónica seguinte é igual a tantas outras. A parte estapafúrdia não é assim tão habitual, mas é usual. Quando chegar à parte estafafúrdia eu aviso.
Mais uma noite atribulada como quase todas as outras. Pouco passava da 1h quando vem para a Sala de Agudos a jovem Alice. A Alice desde os 12 anos que, segundo a irmã que a acompanhava, tenta pôr fim à vida.
Tinha tomado mais de meia centena de comprimidos de um antipsicótico qualquer. Eram quase meia centena de episódios pelos mesmos motivos, já a reconhecia, não era a primeira vez que a recebia.
Por muito frenético e impaciente que me torne nos turnos da noite, nestes momentos atingue-se-me sempre uma aura de compaixão e compreensão. Há quem defenda a estratégia da "agressividade" moderada enquanto lidamos com este tipo de situações, para tentar evitar futuras recaídas e novas tentativas de suicídio. Dar uma liçãozita de moral, deixar ficar a sonda após a lavagem e o carvão, como uma forma de dizer, Não faças isto outra vez! Tás a ver como é dificil ter essa sonda do nariz, vê lá não repitas.
E depois há quem defenda a estupidez em bruto, como já vão perceber. Eu não defendo nem uma coisa nem outra, apenas faço o que me compete, explico com calma o que vou fazer e faço. Tudo o resto vem depois; perceber os motivos, encontrar alternativas, será mais fácil com a pessoa acordada.
E agora a parte estapafúrdia:
Eu já tinha saído da sala, mas soube mais tarde (já vão perceber como) o que se passou:
Entra o Dr I (de Imbecil) e pergunta Então o que é que aconteceu? A Alice estava em coma, quem respondeu foi a irmã, que segurava o choro,
A minha irmã tentou suicidar-se.
Aí foi?! Para se matar atira-se de uma ponte ou põe-se em frente de um comboio.
Como?! Está a brincar comigo?! Pergunta a irmã incrédula, Se fosse um familiar seu gostava que falassem assim consigo?
Não, respondeu ele. Fim da conversa.
Eu continuava no vai vem quando vejo a irmã a chorar fora da sala, afinal não tinha conseguido segurar o choro, ele era ininterrupto tal como todas as outras vezes que a Alice, quase da mesma idade, tentava matar-se. Ela pressentiu-me e virou o olhar escondendo as lágrimas, eu consternado, fingi que não notei a sua mágoa e passo ligeiro... talvez ela quisesse ficar sozinha.
Passados uns dias, vem ter comigo a irmã da Alice. Educada, pede desculpa por incomodar, relembra-me a situação e agradece-me desde logo os cuidados.
Reconhecia-a de imediato, senti-me feliz por aquele agradecimento e perguntei como estava a irmã.
Passou o dia a chorar, estão a dar-lhe medicamentos no soro, respondeu. Posso fazer-te uma pergunta, espero não trazer-te problemas com isso. Tratou-me por "tu", não levei a mal.
Sim, claro.
Quem era o maqueiro que a dada altura esteve comigo e com a minha irmã? Fez-me a descrição dele, contando depois o que se tinha passado, achei aquilo um pouco estranho, não fazia a mínima ideia a quem ela se estava a referir. Continuou com a descrição, até que eu percebi,
Esse senhor não é maqueiro, é médico.
Bem me parecia, observou, Achei estranho ele estar a registar tensões no computador.
Enquanto me contava tudo isto os seus olhos voltavam a segurar o choro, disse-me, Eu sei que para vós (profissionais de saúde) que lidam com estas situações enumeras vezes, isto se calhar não é nada, não é motivo para reclamação, mas é minha irmã, sangue do meu sangue.
Se no início talvez compreendesse minimamente a estupidez do Dr. I, talvez pelo cansaço das horas seguidas, pelo stress que leva à hipoxigenação cerebral e consequentemente a actos estapafúrdios, passei logo a condenar profundamente.
Ela foi para casa pensar a reclamação.
As melhoras Alice
Nota: Alice nome fictício, carvão (para não prof. de saúde) - neutraliza a acção dos medicamentos ingeridos em excesso em casos de intoxicação
G.