quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O Brutus, o Sr. Serafim e a Dona Lurdes


O Brutus é um cão de grande porte, este tipo de cães geralmente não dura mais que 7 ou 8 anos. A veterinária suspeita de uma encefalite ou uma neoplasia cerebral. Os donos estão tristes, o Brutus já não se acha capaz de ser aquele cão de guarda imponente, que quando ladrava fazia tremer o intruso mais incauto, perdeu a sensibilidade proprioceptiva e em momentos de maior stress, como idas ao veterinário, perde o controle de esfíncteres esvaíndo-se em merda. Merda pra isto, mas que vida de cão é esta? Pensará ele.. A médica de animais, prudentemente sugeriu aguardar uma semana para avaliar a evolução, mas avisou que eutanasiar poderá ser a melhor solução para terminar com o sofrimento do cachorro. O mundo animal parece estar mais avançado, eutanasiar já é palavra do vocabulário.
O Sr Serafim trabalhou toda a vida, homem sério, de bom trato. Pelas minhas contas há mais de 5 anos foi-lhe diagnosticado neoplasia intestinal, neste último ano perdeu por completo a pouca qualidade de vida que ainda lhe restava, a metastização do tumor, deteriorou por completo a sua condição física e mental, é completamente dependente em todas as necessidades básicas. A família agoniza com o seu sofrimento, exaspera com os seus gritos que aumentam apenas com um toque.
A D. Lurdes criou os 2 netos que hoje têm 14 e 11 anos. Apesar de passar os sessenta, aparenta menos dez. Calma, mas eléctrica, mulher de sete ofícios, teve uma vida difícil, mas rica e farta, nasceu na Venezuela e chegou a estar emigrada no Canadá, agora dedicava-se ao campo e às oliveiras. Foram estas inocentes árvores que a atiraram para o suplício, caiu de uma e fracturou a coluna cervical. Passa os dias entre o serviço de Ortopedia e cuidados intensivos. Estabiliza, ortopedia, pára de respirar, intensivos. A fractura é superior, atingiu a vértebra C4, a função respiratória está seriamente comprometida, o que ainda a mantém viva é uma traqueostomia. Mantém o seu perfeito juízo e já manifestou o desejo de morrer. Os filhos amam-na, daquele jeito de amar, que apenas os mais afortunados têm a possibilidade de perceber, revezam-se para, sempre que permitido, permanecerem junto dela e depois choram e desacreditam no Deus que trouxe ao mundo os seus filhos e o pão para as suas mesas.
A vida para ela já não faz qualquer sentido e sem o manifestar condena quem a prolonga, reanimando-a sucessivamente, Perdoai-lhes senhor, porque eles não sabem o que fazem, reza ao Salvador. Para ela e ao contrário do parecer dos filhos, já não tem vida de relação, não os encara, mal lhes fala. A única relação baseia-se no alívio disfarçado dos filhos de ainda puderem ver a mãe querida viva. Tamanho egoísmo que só pensam no seu pseudo-conforto.
Muitas vezes vejo escrito em diários clínicos e notas de enfermagem, “sem vida de relação”, a verdade nua e crua e a garganta entala-se-me. A vida vive do afecto e da relação, que é o seu verdadeiro motor. O resto é conversa. Quando médicos e enfermeiros escrevem “sem vida de relação” apesar de cair mal, procuro ser realista e penso, É um facto. O desenlace ideal, seria uma morte junto da família, do lar, da terra, morte serena, em paz, com a família consciencializada que é o melhor a fazer. Agora quem não passa por elas não compreende, nem muito menos sabe o que significa eutanásia. A igreja traça-lhes as ideias e o juízo.

E se o Sr Serafim fosse o papa, e a Dona Lurdes mãe de um ministro? Talvez apressassem o debate público, esclarecessem e constituíssem a eutanásia como um direito constitucional (evidentemente sustentado em princípios bioéticos) desembrulhada de preconceitos e ignorância. Sabemos que a realidade do país, o próprio sistema de saúde não estão ainda preparados para lidar com a eutanásia, comecem a trabalhar nesse sentido.

G.

Nota: recomendo o filme Mar Adentro, vejam um pouco em cima

9 comentários:

  1. Ora aí está um tema, que apesar de muitas vezes meditar nele, não tenho uma opinião verdadeiramente consistente. É um tema bastante complexo...
    Há dias, numa notícia do telejornal, fiquei deveras admirada, quando disseram que uma unidade de cuidados paliativos nunca tinha a lotação completa. Sempre pensei que estas unidades estivessem sempre lotadas. Aliás, um dos motivos por que os doentes pedem a eutanásia, é o sofrimento físico extremo a que estão sujeitos.
    O pior é quando a dor da alma ainda é maior…. Prometo que vou continuar a reflectir.
    Um abraço.

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  2. Realmente a morte é um tema muito delicado e que por vezes é falado e debatido por mts sem o devido respeito,(o que não acontece neste post).
    Na minha opinião não deve ser fácil decidir querer acabar com o sofrimento e pensar que deixa a chorar as pessoas que a amam e que queriam que ela continua-se entre elas ou viver mais uns tempos a sofrer e estar perto dos ente queridos...a dor e o sofrimento deve ser mesmo mt grande para querer 'partir'.
    Também defendo que o ideal seria uma morte junto da familia, no lar, no local onde a pessoa consiga falecer em paz, com serenidade com 'qualidade'
    Por vezes questiono-me: uma pessoas saudável pq tem algum problema, desequilibrio ou por outras razões suicida-se, e uma pessoas que está a sofrer, a definhar num serviço de hospital, que sabe que tem os dias contados não pode terminar com a vida porquê????
    Eu pessoalmente sou a favor da eutanásia...

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  3. Com a nossa vivência diária é impossivel não nos interrogarmos com a questão da eutanásia... quanto a mim se nenhum de nós "pediu a ninguém para nascer", sobra-nos a dignidade de poder tomar a decisão de morrer. Se cada um de nós capaz fisicamente o pode fazer através do suicídio, quem está mentalmente mas não fisicamente capaz de o fazer também deveria ter o direito de escolher... Sinceramente prolongar uma vida de sofrimento, que na realidade pouco tem de "vida", não é para mim uma opção... E se fossem vocês?
    AR

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  4. Olá, admiro a coragem de enfrentar este tema que é, sem dúvida, complexo. Complexo devido à subjectividade que envolve, devido aos sentimentos que envolve e também devido à problemática do que realmente quer o ser Humano, pois este tem a capacidade de mudar de opinião constantemente.
    Um dos grandes problemas deste tema é o facto do que os membros envolventes pensam e, principalmente, o que acham que o próprio poderá sentir. Pois conheço a realidade da dita"D. Lurdes" (que por acaso é mais nova do que o referido e não passa a vida entre os serviços e ortopedia, apenas teve 2 escapadelas da UCI e bem pequenas. Basicamente reside na UCI por critérios não esclarecidos), por trabalhar directamente com ela e, "Guilherme", posso assegurar que a sua vontade demonstrada é tudo menos morrer. A força com que se agarra à vida é incrivel e isso demonstra-o em todas as atitudes que toma quando pensa que a sua vida pode ser comprometida. Será correcto os outros acharem que a eutanásia é certo para si e sua familia? Será correto achar que o sofrimento que as pessoas passam deve ter fim? E elas o que acham? E será que a nossa percepção sobre a sua vontade será certa?
    É por isso que este tema deve percorrer um longo caminho de discussão e sem ideias ou opções extremistas, pois acredito que ainda não estamos em condições de escolher, pois é preciso conhecer muito bem todas as condições e, acima de tudo, ter meios de opção. E é isso que nos falta. Onde estão os cuidados paleativos neste país? Será que se houvesse este caminho não diminuiria a vontade de deixar este mundo? E essa vontade de partir não existirá, muitas vezes, apenas enquanto estamos bem? Muito há a fazer e a pensar. E o que mne entristece é que este país não tem ainda condições para enfrentar esta problemática. Muito há a fazer para o conseguir, mas a realidade, é que a maioria dos leigos e tristemente dos profissionais, é que procuram fins sem criar meios. Dessa forma nada será verdadeiramente construido, eo que for, de certo não será bem fundamentado e fortalecido

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  5. Caro(a) último anonimo(a)
    A dita D. Lurdes não é a senhora que lamentavelmente está na UCI, que fique bem claro que todas estas cronicas são inventadas, apenas têm uma base verdadeira, mas são historias que todos sabemos que eventualmente em qualquer lado são bem reais . a história da D Lurdes realmente é baseada na triste historia dessa senhora, mas eu não faço a minima ideia do que a senhora fazia, de onde vem e muito menos se desejava morrer. Fico muito contente que ela lute pela vida. Evidentemente que a eutanasia nunca poderia ser imposta e teria que ser muito bem analisado cada caso, a eutanasia nunca poderá ser um jogo com a vida! Concordo contigo, ainda falta muito evoluir, agora não ponhas em causa se será correcto cada um achar que a eutanasia é o correcto para si ou para a sua familia?! Aqui não há percepçoes sobre a vontade dos outros, não entendo a tua questão... a percepção não interessa para nada.. é preciso certezas. 1º parte de cada um dos doentes (que é cada um de nós em parceria com a família, só depois é que entra a opinião da equipa de saude. Agora o que eu mais quero no futuro, para mim, para a minha familia, para o mundo, e não tenhas duvidas que mais cedo ou mais tarde vai acontecer, é que ninguém decida, ou tenha o poder de decisão sobre o meu destino, se eu achar que não se reunem condiçoes para viver, eu tenho a minha autonomia, o poder de decisão, claro que não estamos a falar em suicidio assistido!!! Mas de facto tens razao, a nossa realidade não esta preparada

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  6. Caro "Guillherme", não quero de alguma forma ferir algum tipo de susceptibilidades, pontos de vista ou sentimentos envolvidos com o comentário que criei. Apenas pretendo fazer notar que esta grande e séria problemática tem realmente que ser muito pensada e discutida, e têm que se criar muitas medidas antes de qualquer opção ou decisão. E o que é certo, é que actualmente, ainda se discute o tema com base na percepção individual e, acima de tudo, uma percepção baseada no que pretenderiamos para nós, enquanto em pleno estado de saúde, mas perante os problemas alheios. E o que referi em relação à doente em causa visa isso mesmo. Não garante que a percepção de 2 pessoas diferentes estejam certas ou erradas, ou que ambas tenham a sua componente certa ou errada. Ainda é um tema muito subjectivo como referi e para evoluir começa, como acontece hoje mesmo que errado, pela percepção do que nos rodeia a nós e aos outros, principalmente a quem tem défices e deseja colocar fim ao sofrimento. Se a percepção não for viável agora, quando será? Por onde começa a faisca de um problema? De algo real sabemos..... mas até encontrar soluções, muita coisa será suposição, percepção.....
    Mas, opiniões são apenas isso, e ainda bem que existem, só dessa forma se poderé debater temas tâo importantes e delicados. Por isso, os meus parabéns pelos comentários e atenção dedicadas.
    Resta apenas seguir em frente e fomentar a questão, a dúvida, o debate.... e acima de tudo lutar para que alternativas sejam criadas.

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  7. Sou da opinião que o que falta às pessoas para aceitarem a eutanásia de forma natural, como sendo a vontade legítima que alguém possa ter em colocar termo à vida devido à condição que a sua falta de saúde ou doença a colacaram, é pensarem: "E se fosse eu?".
    E realmente o mundo dos animais está muito mais evoluído... Somos mais amigos dos animais (e contra isso nada!), do que dos nossos próprios familiares. Concordo com a palavra Egoísmo. Em tempos tive uma professora de enfermagem que em plena aula, não me deixou expressar esta minha opinião... E enquanto tivermos pessoas assim, que não respeitam a opinião de quem é a favor da eutanásia continuaremos a ver os nossos doentes sujeitos a uma distanásia constante. Respeito quem responda à pergunta "E se fosse eu?" com a resposta "Continuaria a viver", mas não consigo entender como se diz a alguém: "VAI TER de continuar a viver".

    Enf. M

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  8. Essa professora deve fazer tudo menos ensinar..
    Partilho a tua opinião
    muito interessante

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  9. Já pensaram que a esmagadora maioria das pessoas que pede a eutanásia fá-lo não porque queira realmente morrer mas sim como um "grito de ajuda"? Porque estão, por exemplo, num estado terminal de uma qualquer doença e têm uma dor insuportável que as atormenta? Muito provavelmente se forem REALMENTE ajudadas no alivio da dor não pedirão para morrer. Quem fala da dor fala de outra situação qualquer.
    Antes de pensar em ajudá-las a morrer é preciso pensar em ajudar a viver melhor.
    Só uma pequena minoria das pessoas que pedem a eutanásia querem realmente morrer. Aquele senhor espanhol no qual o filme foi inspirado é disso exemplo. São pessoas que, após uma avaliação psicológica, se percebe que não estão a passar por uma fase se sofrimento psicológico nem de uma tristeza profunda e têm, sim, profundas convicções que morrer é o melhor para elas. Nestas, sim, a eutanásia deve ser ponderada.

    Até breve!

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